CONTOS

Conversa em família
(ou paciência é desvirtude)
O
 pai chega em casa depois de um dia inteiro de trabalho e encontra a filha no banheiro. Ela estava tomando banho.
Quando a filha sai, cumprimenta o pai que estava na cozinha e vai para seu quarto se trocar.
Morta de fome e cansaço, a filha vai à cozinha, preparar algo para comer, enquanto o pai assistia seu programa preferido de TV. Após o jantar rápido, vai ao quarto e diz ao pai que não ia arrumar casa nenhuma hoje não, que estava muito cansada, que tinha chegado minutos antes dele e que já tinha tomado banho e jantado, ia deitar um pouco e descansar.
Passa pouco mais de meia hora e o programa que o pai assistia termina. Este se levanta e vai procurar a filha, que já dormia no sofá da sala.
- Não vai tomar banho?
Ainda um tanto sonolenta, murmura um “já tomei”, sem tirar a cabeça de dentro do travesseiro.
- Sua mãe já vai chegar, você não limpou a casa? Você sabe que ela briga...
Sabendo que o pai não desistiria enquanto não recebesse total atenção, levanta a cabeça e diz “a casa ficou sem ninguém o dia inteiro, deve tá limpa”.
O pai vai para a cozinha, passa pelo quarto vazio do outro filho, volta ao próprio quarto e depois vem novamente para a sala.
- Melhor você ir tomar banho antes de sua mãe chegar.
A filha ignora. Nisso o pai abre a porta da sala, deixando que o vento daquele fim de tarde chuvoso entrasse por entre as frestas mal tapadas do cobertor da garota deitada que tentava dormir.
Após uns eternos segundos, fecha novamente a porta, virando-se para a filha.
- Você não vai tomar banho mesmo?
Incrédula no que acontecia, e já sem conseguir voltar ao sono, teve um pouco mais de consciência sarcástica a ponto de brincar: “hoje não, só amanhã agora”
- Que você tem? Tá com dor de cabeça?
- A cabeça não dói, não. Só todo o resto.
O pai dá mais uma volta pela casa, abre mais uma vez a porta da sala, murmurando que a mãe chegaria logo, ia para cozinha adiantar o jantar...
Cinco minutos depois, a mãe chega, entrando pela porta da cozinha, cumprimenta o marido e pergunta pela filha. “está lá deitada com dor de cabeça, ficou o dia todo em casa e não tomou banho ainda”.
A mãe vai à sala e, beijando a filha, lhe oferece um remédio.
- A cabeça não dói não, mãe. Cheguei faz uma hora, nem limpei a casa porque nem deve ter sujado. Tomei uma chuva terrível! Aí tomei banho e jantei, tava com muito cansaço e dor no corpo e vim deitar. Já disse um milhão de vezes e o pai não entende!
- Você sabe como seu pai é...
E, levantando-se para sair, a mãe lembra-se de algo importante e volta: “só me diz uma coisa, você limpou a casa?”
Após um olhar de alguns segundos para processar as informações, a filha se levanta e vai andando em direção ao banheiro:
- Ainda não limpei não, vou primeiro tomar um banho para jantar e depois eu limpo.
           




Impressão
F
ulana de Tal era o que se poderia chamar de massa amorfa. Não chorava, não sorria, não tinha sentimentos, sonhos, dores ou necessidades – nem fisiológicas – ou ao menos não parecia ter, impressão minha, quem sabe tivesse.

Fulana era do tipo que todo patrão amaria ter, mas que nunca seria capaz de notar sua existência para reconhecer o fato e, quem sabe, oferecer um aumento de salário: era a primeira a chegar no escritório e a última a sair, de maneira que ninguém nunca a via passar pela porta. Qual era sua função, seu salário, sua cor preferida, seu nome, seu passatempo após o expediente não chegaram a ser mistérios, já que ninguém nunca tinha parado de verdade para pensar nessas futilidades. Não sei dizer ao certo a que horas comia, e nem mesmo sei dizer se fazia ou não horário de almoço, já que ela praticamente não existia para ninguém, ou ao menos não parecia existir, impressão minha, quem sabe existisse.
Nas ruas, então, nem se fala. Se todos já somos ninguém para todos sem precisar fazermos esforço algum, quanto mais essa Fulana de Tal que andava sempre de cabeça baixa, pensando em não se sabe o quê, se é certo que pensava, vai saber... Impressão minha, quem sabe pensasse.
Não tinha nenhum amigo, amante, parente, ou no mínimo uma paquera de elevador para podermos dizer que vivia; aliás, nem parecia demonstrar sequer interesse por homens, quem sabe até gostasse e só não parecia, impressão minha.
Não sei se ela queria se vingar, se ela queria chamar a atenção, se ela só estava mais uma vez cumprindo ordens, ou, -  por quê não sonhar? - ela estivesse tentando se libertar de si mesma... Talvez sonhasse em ser famosa... Quem sabe? Macabéas podem ser reais.
Segunda-feira no serviço notaram a falta de Benedito, e foi com pesar que descobriram pelo jornal que “homem é encontrado morto à facadas na madrugada de sábado; a assassina foi descoberta através da impressão digital deixada na faca e encontrada num ponto de ônibus do centro.” Como Benedito só era bonitão e não rico, era apenas isso o que o jornal dizia.
“Como é possível haver pessoas assim, né?” “nem me fale” “vou sentir falta dos bombons que ele trazia” “é... eu também” “você já dormiu com ele?” “sim, mas antes que me julgue eu precisava daquela folga tanto quanto você precisou sair mais cedo daquela vez” “não... nem tô falando disso é que...olha, lá vem o puxa saco do chefe” “moças, o chefe mandou que pegassem currículos para contratar um novo empregado” “para substituir o Benedito, né?” “não, eu fiquei com a vaga dele” “então é para que?” “não sei, parece que uma empregada não vem mais, sabe lá por quê, só cumpro ordens... que foto é essa?” “Ah, essa é a mulher que matou o...” “sei... que sensação estranha de que a conheço” “é... eu também” “agora que vocês dois disseram, parece mesmo. Pode ter sido alguma namoradinha dele, teve tantas” “ah, quer saber, pouco importa. E parem de conversinha, agora eu que mando nessa sessão”
Saem os três com a mesma estranha sensação. Cinco minutos depois, já estavam convencidos de que não conheciam não, ou impressão deles, quem sabe conhecessem...
Mas Fulanas de Tals são assim mesmo, nunca passam de uma impressão na cabeça e outra na faca.